O uso de álcool e outras substâncias para busca de prazer ou para amenizar o sofrimento acompanha a história da humanidade desde seus primórdios. Às vezes, e para algumas pessoas, o uso pode gerar problemas como acidentes, desenvolvimento de dependência e danos ao organismo.
No último século, houve uma enorme evolução do conhecimento científico sobre como estas substâncias afetam nosso corpo e a importância do contexto social em que são consumidas. Entretanto, ainda prevalece em grande parte da população o conceito ultrapassado e moralista que atribui à droga em si e ao caráter do usuário a responsabilidade pelos problemas associados ao uso. Este conceito errôneo leva a intervenções inadequadas e ineficientes.
A ciência mostra que o desenvolvimento de dependência de álcool ou de outras drogas é resultado de uma soma de fatores de vulnerabilidade, incluindo aspectos biológicos, psicológicos e sociais e que as intervenções mais efetivas são aquelas que os levam em consideração, desenvolvendo projetos terapêuticos individualizados. Ou seja, não há panaceias ou soluções aplicáveis a todos.
A neurociência já demonstrou que a dependência química é essencialmente uma doença do cérebro, mas com imensa influência do meio ambiente. Dentre as pessoas que utilizam álcool cerca de 30% apresentam problemas associados ao uso. Cerca de 40% dos dependentes de álcool apresentam transtornos mentais como depressão e ansiedade, muitas vezes antecedentes ao uso.
A estigmatização dos dependentes de álcool ou outras drogas só os afasta dos tratamentos e joga neles a responsabilidade por problemas sociais dos quais eles são mais frequentemente vítimas do que causadores. A internação em ambientes sem equipes multidisciplinares de profissionais adequadamente treinados é inapropriada e na maioria das vezes inefetiva.
Segundo pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o contato com o álcool e as drogas, entre os brasileiros, se inicia ainda na adolescência, quando a maioria das pessoas tenta se sentir inserida em um determinado grupo. Após o primeiro contato, essas pessoas, em grande parte, acabam se tornando dependentes de alguma droga.
Aproximadamente 20% dos pacientes tratados na rede primária bebem em um nível considerado de alto risco, pelo menos fazendo uso abusivo do álcool. Estas pessoas têm seu primeiro contato com os serviços de saúde por intermédio de clínicos gerais. Apesar disso, estes pouco detectam a presença de acometimento por tal uso, o que tem repercussão negativa sobre as possibilidades de diagnóstico e tratamento. Em geral, o foco da atenção está voltado para as doenças clínicas decorrentes da dependência – que ocorrem tardiamente – e não para a dependência subjacente.
A prevenção e o tratamento continuam insuficientes em muitas partes do mundo. Por ano, apenas uma em cada sete pessoas com transtornos decorrentes do uso indevido de drogas é tratada. Quando se trata de dados brasileiros, 3,563 milhões de brasileiros consumiram drogas ilícitas em um período recente.
Cabe lembrar que o abuso de drogas é um fenômeno complexo, envolvendo fatores de risco, que são aqueles que colocam os indivíduos propensos ao uso abusivo, como baixa autoestima, relações familiares disfuncionais, pobreza, fácil acesso às drogas, baixo rendimento escolar/baixa escolaridade.
Por outro lado, fatores de proteção que, ao contrário, diminuem as chances do uso abusivo, tais como: desenvolvimento de habilidades interpessoais, sociais, cognitivas e de conhecimento de sentimentos e emoções devem ser privilegiados nas estratégias de prevenção para redução dos fatores de risco.
A abordagem da saúde mental na Atenção Primária tem aspecto relevante quando se trata do consumo de álcool e drogas, o que reforça o papel do médico de família e comunidade na identificação de pessoas que enfrentam problemas devido ao consumo, assim como os reflexos na saúde dos familiares. As evidências clínicas revelam necessidade de ampliação da cobertura em saúde mental em razão da alta prevalência de sofrimento psíquico identificado na Atenção Primária.
Muitos consumidores de drogas não compartilham da expectativa e do desejo de abstinência dos profissionais de saúde e abandonam os serviços. Outros, sequer procuram tais serviços, pois não se sentem acolhidos em suas diferenças. Assim, o nível de adesão ao tratamento ou a práticas preventivas e de promoção é baixo, não contribuindo para a inserção social e familiar do usuário.
Reconhecer o consumidor, suas características e necessidades, assim como as vias de administração de drogas, exige a busca de novas estratégias de contato e de vínculo com ele e seus familiares, para que se possa desenhar e implantar múltiplos programas de prevenção, educação, tratamento e promoção adaptados às diferentes necessidades.
Política Pública e ações de prevenção
A política sobre drogas implica, não somente, ações de prevenção para o uso abusivo, mas também, ações para redução da produção e circulação de drogas, bem como ações de reabilitação de pessoas que se tornaram dependentes, quadro com características de maior gravidade para o cuidado.
Nos casos mais agudos de abuso de substâncias, a rede assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS) carece de serviços de emergência e cuidados hospitalares de maior complexidade. Por outro lado, os serviços de reabilitação da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS – criada no contexto da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial – também têm apresentado atualmente subfinanciamento e pouca infraestrutura de ordem física e de recursos humanos, o que dificulta um trabalho articulado em rede com foco na inclusão e desenvolvimento do protagonismo e autonomia dos usuários, sendo estes os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD).
É preciso destacar, também, que a cultura de guerra às drogas acaba por se traduzir na evitação e guerra às pessoas que as utilizam, estigmatizando-as e segregando-as, traduzindo-se na grande resistência de profissionais da saúde e da educação na adoção de medidas de cuidado em saúde. Nesse sentido, ações de prevenção e promoção só poderiam ter efeito se os profissionais pudessem sobrepujar preconceitos, considerar que o objeto droga faz parte da convivência social, mas o foco de atenção em saúde deveria ser o cuidado às pessoas, e não as drogas em si.
Classicamente, a prevenção do uso indevido de drogas pode ser dividida em prevenção primária, secundária e terciária. A primária pode ser definida pelo conjunto de ações que procuram evitar a ocorrência de novos casos de uso abusivo ou, segundo outra visão, evitar o primeiro contato com o produto.
Prevenção secundária é o conjunto de ações que procuram evitar complicações para as pessoas que fazem uso de uma substância, mas que apresentam níveis relativamente baixos de problemas associados a esse uso.
A prevenção terciária, por sua vez, é constituída pelo conjunto de ações que, a partir da existência de uma dependência, procura evitar prejuízos adicionais e/ou reintegrar na sociedade os indivíduos com problemas mais graves. Também busca melhorar a qualidade de vida dos usuários na família, no trabalho e na comunidade de forma geral.
O Decreto nº 9761/2019, que aprova a Política Nacional sobre Drogas no Brasil, propõe como orientação geral de prevenção, o disposto no item 4.1.1, abaixo:
“A efetiva prevenção ao uso de tabaco e seus derivados, de álcool e de outras drogas é fruto do comprometimento, da cooperação e da parceria entre os diferentes segmentos da sociedade brasileira e dos órgãos da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, fundamentada na filosofia da responsabilidade compartilhada, com a construção de redes que visem à melhoria das condições de vida e promoção geral da saúde da população, da promoção de habilidades sociais e para a vida, o fortalecimento de vínculos interpessoais, a promoção dos fatores de proteção ao uso do tabaco e de seus derivados, do álcool e de outras drogas e da conscientização e proteção dos fatores de risco”.
Dentre as políticas públicas adotadas na área de drogas, mundialmente, como o controle da oferta e o acesso a serviços sociais e de saúde para usuários, a prevenção é a que apresenta a melhor relação custo-benefício para a redução tanto do consumo abusivo como de suas consequências. É estimado que, para cada dólar usado em programas de prevenção escolar, evita-se o gasto, em média, de 18 dólares com o custo social de problemas relacionados ao abuso de drogas.
Fontes:
Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP)
Maria Cristina Mazzaia e Karina Franco Zihlmann – Escola Paulista de Enfermagem (UNIFESP)
Maria Lucia Formigoni – Escola Paulista de Medicina (UNIFESP)
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Telessaúde Sergipe