De acordo com estudo, crítica às vacinas pode embutir crítica às relações de poder profissional-paciente, apontando para a necessidade de uma comunicação mais democrática na ciência e na saúde.
Para entender alguns dos fatores envolvidos neste fenômeno complexo, a hesitação vacinal, uma pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) realizou um estudo qualitativo, entrevistando responsáveis de crianças na capital catarinense.
Ao todo foram entrevistados 29 cuidadores de 18 famílias entre 2021 e 2022. Entre essas, seis vacinaram inteiramente seus filhos e demonstraram confiança na vacinação. Por outro lado, 19 cuidadores de 12 famílias revelaram ser hesitantes à imunização. Os círculos sociais de que os entrevistados participaram foram apontados como principais fontes de questionamento sobre as informações relacionadas às vacinas, com destaque para grupos pré-natais e escolares.
Os responsáveis mencionaram os profissionais da saúde, e principalmente os pediatras, como importantes precursores de informações verídicas sobre a vacinação. A internet também foi bastante citada como possível fonte de consulta, mas com visões divergentes entre os entrevistados. A maioria afirmou evitá-la por temer conteúdos “falsos e alarmistas”.
Para além dos resultados numéricos, a maior diversidade em aspectos como raça/cor, gênero, tipos de núcleos familiares e classes socioeconômicas foi o principal motivo – e o diferencial – da pesquisa. “Normalmente os estudos de hesitação vacinal nacionais e internacionais têm um olhar pouco direcionado às questões da diferenciação social, ou às particularidades da hesitação a partir de critérios sociais”, explica ao Jornal da USP a antropóloga e professora da FMUSP, Márcia Thereza Falcão, que orientou a pesquisa de Camila de Carvalho.
“A hesitação vacinal é um fenômeno específico do contexto e está relacionada à história, época e cultura de cada localidade. Sabe-se que os significados atribuídos à vacinação, e principalmente à recusa vacinal, não são homogêneos em todo o mundo”, escrevem as autoras em artigo.
Florianópolis é conhecida como um reduto para aqueles que procuram um estilo de vida “natural”. Com uma visão holística sobre a medicina, eles tecem críticas sobre a hegemonia da indústria médico-farmacêutica e a obrigatoriedade da vacinação infantil. Mesmo assim, a maior parte afirma não ser contrária às vacinas em si, ou seja, não são anti-vacinas.
Além da oposição à imunização, muitos pais afirmam que conseguem, com seus cuidados, barrar seus filhos de toda e qualquer enfermidade que possam acometê-los. Essa visão individualista acerca dos cuidados com os filhos é um dos resultados de uma tendência atual em que as pessoas buscam cada vez mais cuidados customizados, o que, de acordo com Camila Carvalho, é “epidemiologicamente inviável”. A vacinação em si é individual, mas a cobertura vacinal é uma prática de cuidados de saúde pública e que acaba acarretando num cuidado coletivo, avalia Camila, que é médica de família.
Na capital catarinense, o estudo apontou que os responsáveis que menos vacinaram seus filhos foram aqueles com maior escolaridade e renda. Esse resultado é uma manifestação contemporânea que é quase o oposto ao de um dos marcos da vacinação no País, a Revolta da Vacina. No início do século 20, com influência de um momento de tensão social após recente abolição da escravatura, o medo da população negra e pobre acerca da vacinação contra a varíola estava muito relacionado com a política repressora e um projeto higienista existente no País. Essa visão priorizava a saúde, a educação pública e o ensino de novos hábitos higiênicos pela medicina social, e seus defensores afirmavam que uma população saudável e educada seria a maior riqueza de uma nação.
Na década de 1970, em pleno regime militar, houve a institucionalização do PNI, Programa Nacional de Imunizações, para estimular e expandir a utilização de agentes imunizantes – e, consequentemente, deu início à chamada “cultura de vacinação”. “As pessoas se vacinavam e questionavam pouco o porquê de se vacinar, que passou a fazer parte de uma cultura do cuidado, sobretudo do cuidado infantil”, afirma Márcia Falcão.
Ela relata que surge “a partir dos anos 90, principalmente nos países do Norte Global, e chegando nos países do Sul Global, sobretudo no Brasil, o fenômeno do questionamento da indústria médico-farmacêutica sobre a produção das vacinas, os efeitos colaterais e a eficácia delas”. Em sua avaliação, isso se relaciona com críticas gerais à ciência, mas principalmente a uma ciência que não se comunica com a sociedade.
Camila Carvalho entende que “nunca se teve uma cobertura hegemônica no Brasil, a suposta tradição não sustenta a prática, e a população não saber o porquê se vacina, deixa bem mais frágil”. Até pouco tempo, acreditava-se que o País já teria criado uma “cultura de imunização”, mas o estudo mostra como uma dita tradição não é suficiente para uma cobertura realmente eficaz, tendo em vista as desigualdades no Brasil e as dúvidas não solucionadas de muitos cidadãos.
O estudo, que acabou tendo suas entrevistas conduzidas em plena pandemia de Covid, cita o contato com outras famílias hesitantes como o principal gatilho para questionamentos sobre a vacinação de rotina. Para as pesquisadoras, a falta de debates sobre a ciência com a sociedade civil dificulta o entendimento. “Os debates democráticos que ajudem amplas parcelas da população a ter conhecimento científico, a não desinformação e uma defesa justa da ciência, e não cega por parte da classe científica, ajudariam a entender os anseios da população”, complementa Márcia Falcão.
“As famílias entrevistadas apresentam diversas críticas sobre a irredutibilidade e inflexibilidade das instituições diante de suas dúvidas sobre a vacinação. Além disso, o caráter ‘inquestionável’ atribuído às vacinas pelos prestadores de cuidados de saúde é mencionado como uma barreira para o sucesso das discussões sobre vacinas com eles. As famílias sentem que os profissionais de saúde se encontram numa posição de superioridade moral intransponível – e questionam esse estatuto. A crítica às vacinas é também uma crítica às relações de poder estabelecidas na relação profissional de saúde-paciente”, descrevem elas no artigo.
Na avaliação da professora, os governos e instituições públicas de saúde não podem fechar os olhos para as pessoas que duvidam da vacina, porque mesmo sendo uma decisão individual, essas críticas e recusas atingem a saúde de maneira coletiva. “Falar sobre vacina, seja da forma de produzir, da forma de estudar, da forma de entender os mecanismos de ação da vacina, mas também das formas das pessoas duvidarem, entender a forma como as pessoas precisam de melhor informação sobre a vacina, e dos medos ou receios que elas têm da vacina é muito importante para a comunicação pública da ciência”, diz.
Para ela, essa comunicação tem que ser democrática e inclusiva; e não só para um grupo ou para as elites. “A comunicação pública e democrática da ciência é um dever dos cientistas perante a sociedade”, enfatiza Márcia Falcão.
As conclusões da pesquisa foram discutidas no artigo “Caregivers’ perceptions on routine childhood vaccination: A qualitative study on vaccine hesitancy in a South Brazil state capital”, publicado na revista Human Vaccines & Immunotherapeutics.
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