A medicina evolucionista incorpora uma visão mais ampla e ecológica da saúde, atenta ao diálogo contínuo entre as espécies que tentam sobreviver e o ambiente e propõe maior atenção às interações entre o organismo humano e seu ecossistema, usando premissas da evolução para compreender melhor doenças recorrentes no mundo moderno, como diabete, câncer e ansiedade.
Ninguém duvida que a biologia e a medicina são áreas intimamente conectadas. A medicina não se limita só aos aspectos biológicos, é claro, mas é impossível imaginar seu desenvolvimento sem conhecimento deles. Pode ser, porém, que a medicina ainda não esteja suficientemente atenta àquela que é uma das bases da biologia, que é a teoria da evolução. Campo em certo sentido recente, a medicina evolutiva propõe um olhar mais afinado com esta perspectiva.
“A medicina evolutiva estuda as conexões que o conhecimento da biologia evolutiva pode trazer ao estudo da saúde e das doenças, tanto na compreensão das origens dessas doenças, como de seu funcionamento e terapêutica”, define de maneira ampla o professor Alexandre Ferraro, que lidera um grupo da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e acaba de ser eleito membro do Conselho Diretor da Sociedade Internacional de Medicina Evolucionista e Saúde Pública.
Ele explica que, mesmo a teoria da evolução sendo um pilar essencial na compreensão da biologia, por muito tempo ela não pôde dar uma contribuição maior à medicina, principalmente por motivos históricos. “Logo após seu nascimento, a evolução sofreu um desvio para um lado mais sociológico, que deu origem a ideias como a eugenia.” Mesmo que de maneira errônea, explica ele, “a teoria da evolução acabou dando fundamentos científicos para a eugenia e se tornou fonte para justificativas ligadas ao racismo e a tragédias como o Holocausto.”
Por isso, se tornou um tabu fazer, na área da saúde humana, essa ponte com a teoria da evolução. “A biologia molecular, por exemplo, avançou enormemente na medicina. Mas a biologia evolucionista tinha essa herança maldita, digamos assim. Então, só mais recentemente, conforme se multiplicaram os questionamentos, viu-se que, exatamente pela matriz biológica da saúde humana, um olhar a partir da biologia evolucionista seria não só de grande contribuição, mas também essencial para a compreensão de aspectos que de outra forma seriam incompreensíveis.”
Mas mesmo com essa espécie de suspensão, o campo já vem progredindo há pelo menos três décadas. “A medicina evolutiva não é muito nova como conhecimento, mas sim se pensarmos na estruturação de um corpo de pensadores. Ainda assim, ela já tem trazido contribuições não só do ponto de vista clínico, mas também da saúde pública”, diz Ferraro.
Ferraro acredita que haveria um grande avanço nas políticas públicas se houvesse a compreensão de que a origem de algumas doenças crônico-degenerativas, que são as que mais matam no mundo todo, “tem a ver não tanto com estilos de vida ou comportamentos do adulto, mas com trajetórias determinadas biologicamente pelo que acontece dentro do útero e nos primeiros anos de vida” – algo que a evolução ajuda a explicar.
Isso é o que ele testemunha em suas próprias pesquisas. “Estudo a restrição de crescimento intrauterino e o estresse psicossocial sofrido durante a gestação, e como isso influencia a trajetória de vida que o indivíduo vai cursar”, detalha ele. E exemplifica: “Isso implica desde uma primeira menstruação precoce nas meninas, até o aumento da massa gorda no corpo, com risco maior de doenças metabólicas e cardiovasculares no adulto.”
Num certo sentido, compara o médico, as doenças crônico-degenerativas do adulto podem ser vistas como um “pedágio” pago para garantir a sobrevivência da espécie até o período fértil, quando há maturidade biológica para a reprodução.
Ele destaca o impacto que pode ter, inclusive do ponto de vista do custo-efetividade, reconhecermos que “o efeito de uma intervenção nos primeiros mil dias de vida pode ser muito maior do que buscar resolver depois o problema no adulto”.
Conhecimentos como esses decorrem não só de pesquisas com modelos animais, mas também de estudos observacionais consistentes, incluindo “experimentos naturais” que aconteceram ao longo da história com seres humanos.
A mensagem resumida é que a medicina evolucionista nos obriga a ter um olhar muito mais global e ecológico da saúde, que nos permite perceber que há um diálogo contínuo entre o organismo e o ambiente, visando a uma melhor adaptação para a sobrevivência da espécie.
A medicina evolutiva já tem diferentes linhas de pesquisa que agregam o olhar da evolução ao entendimento de doenças infecciosas e autoimunes até ao câncer.
“Presenciamos uma explosão no diagnóstico de doenças autoimunes, e quando temos em mente que evoluímos para conviver com helmintos [parasitas] no nosso intestino, podemos nos perguntar se nos livrarmos completamente deles pode estar alterando de alguma forma nossa imunidade. E há uma série de estudos que estão encontrando exatamente isso, inclusive com propostas terapêuticas como a colonização com helmintos para a supressão dos sintomas gastrointestinais de doenças autoimunes. Veja como isso amplia nosso entendimento, de um ponto de vista higiênico para um ponto de vista ecológico-evolucionista.”
Quanto ao câncer, vemos um processo de seleção natural ocorrer tanto no surgimento da doença como na forma como as células cancerígenas respondem a nossos próprios mecanismos de defesa e ao tratamento, como quimioterapia e radiação.
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