Traumas são experiências marcantes que podem promover adoecimento psíquico


 

Comumente, a palavra “trauma” é empregada para descrever situações aversivas que envolvem estresse e produzem uma experiência negativa. Segundo Álvaro Cabral Araújo, médico e professor convidado do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), o termo é usado de forma frequente para descrever situações de estresse e frustrações cotidianas.

Para a psicologia e psiquiatria, entretanto, a palavra é usada para descrever experiências graves, potencialmente capazes de promover um adoecimento psíquico. “Os manuais diagnósticos de psiquiatria como a CID-11, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o DSM5, da Associação Americana de Psiquiatria, descrevem o trauma ou evento traumático como uma exposição a experiências graves, como episódios concretos, ou ameaças de morte, lesão grave ou violência sexual”, explica Araújo.

Consequências

O psiquiatra explica que “trauma” não é o nome dado para um diagnóstico psiquiátrico ou para um transtorno psiquiátrico específico. A exposição a um evento traumático não implica, obrigatoriamente, no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. O sofrimento e os prejuízos experienciados por pessoas que sofrem algum trauma são variáveis, e a maioria das pessoas se recupera espontaneamente.

Entretanto, existem alguns transtornos que estão relacionados a traumas e a estressores, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), quadro que acomete aproximadamente 10% dos indivíduos expostos a um evento traumático. Araújo pontua que, em casos de TEPT, existem critérios específicos de diagnóstico e que é possível realizá-lo. Depois que um indivíduo é exposto a um trauma, ele pode apresentar alguns sintomas, segmentados em três grupos.

O primeiro diz respeito à revivescência do evento traumático – também conhecido como sintoma intrusivo. “Isso inclui lembranças frequentes sobre o trauma, são pensamentos intrusivos; não é que a pessoa se esforça para pensar sobre aquele tema, ela é invadida por essas lembranças. Isso pode acontecer também na forma de pesadelos e na forma de flashbacks”, exemplifica.

O segundo grupo de sintomas é o de evitação ou esquiva. A partir do momento em que o indivíduo desenvolve o quadro de Estresse Pós-Traumático, é normal que ele passe a evitar coisas relacionadas ao evento traumático. “Se uma pessoa sofreu um assalto caminhando em uma determinada rua, é possível que a pessoa evite passar por aquele lugar, evite estar em contato com pessoas que estavam presentes no dia do assalto, por exemplo”, explica o psiquiatra.

O terceiro grupo diz respeito a sintomas de hiperatividade ou hiperexcitação, em que os indivíduos afetados pelo transtorno, depois da exposição ao trauma, vivem em estado de alerta, assustam-se com mais facilidade e são mais reativos e irritados do que em condição normal.

Miriam Debieux Rosa, professora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia (IP) da USP e coordenadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/IPUSP) e do Grupo Veredas: psicanálise e imigração (PSOPOL/IPUSP), pontua que o diagnóstico é decisivo para determinar o tipo de tratamento adequado para pessoas que sofreram com traumas.

Apagamento da memória

Pessoas expostas a eventos traumáticos, estressores graves ou situações emocionais muito intensas podem apresentar manifestações de dissociação, como a amnésia dissociativa – quadro em que alguns indivíduos são incapazes de recordar aspectos relevantes do evento traumático vivenciado.

Segundo Mario Otero, psicólogo no Ambulatório de Transtornos Somáticos (Soma) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em alguns casos, essa amnésia afeta alguns momentos da vida do indivíduo, ou pode ser mais severa, caso em que a pessoa pode esquecer quem ela é, se tem família e o que faz profissionalmente, por exemplo. “Essa dissociação ocorre para proteger a pessoa das memórias e dos afetos ruins ligados a algum tipo de experiência que ela não conseguiu elaborar psiquicamente”, exemplifica.

Cabral explica que existem outras manifestações dissociativas, como desrealização – sensação de desconexão com o ambiente, como se ele não fosse real ou se algo estivesse modificado – ou despersonalização – situação em que o indivíduo se enxerga como se estivesse de fora da situação vivida.  “Esses fenômenos dissociativos podem ser descritos como uma desintegração das funções psíquicas, da consciência, das percepções, da memória. São fenômenos que podem ocorrer diante de estressores graves, provocando essa dissociação”, pontua.

Mesmo que memórias traumáticas sejam bloqueadas, situações como a reexposição a algum evento traumático ou o contato com detalhes da experiência vivida podem permitir que as lembranças sejam acessadas. No caso de uma pessoa que sofreu alguma violência sexual no final da infância ou início da adolescência, por exemplo, e passou boa parte da vida sem entrar em contato com aquela memória, é possível que esse conteúdo seja acessado novamente, caso ela experiencie outra situação abusiva, ou ouça algum relato sobre alguma violência.

Tratamentos

Nos casos de dissociação, Otero explica que o tratamento desses quadros consiste em colocar o indivíduo afetado para relatar o que for possível e o que for lembrado e, à medida em que ele se abre para o analista, consegue acessar as experiências ruins e atribui um significado ao acontecimento. “Quando a pessoa vai se sentindo mais segura e mais forte para se aproximar dessas experiências ruins do passado, é quase como se a dissociação, essa separação daquele conteúdo ruim, não fosse mais tão necessária”, exemplifica o psicólogo.

Miriam aponta que o grau das situações traumáticas influencia na forma como o tratamento com os afetados deve ser realizado. “Situações violentas, por exemplo, vão ter vários níveis de elaboração, então há uma vida para lidar com as perdas, e principalmente essas muito intensas. Mas isso não significa que a pessoa tenha que viver em sofrimento o tempo todo”, exemplifica. Na própria psicanálise, segundo a professora, existem inúmeras abordagens a respeito do tipo de tratamento, mas dependem do modo como o indivíduo se defende na sua organização psíquica.

Para Araújo, é importante que os indivíduos que são expostos a uma situação traumática sejam acolhidos. “Tanto profissionais como familiares que vão prestar algum tipo de assistência no momento imediato, poucos dias após a exposição ao evento traumático, devem ter esse cuidado de não forçar a pessoa a lembrar ou contar detalhes da situação que aconteceu com ela, apenas se colocar ali à disposição, acolher e tentar fortalecer a rede de apoio”, explica.

Segundo o psiquiatra, cerca de 90% das pessoas expostas a eventos dessa natureza se recuperam completa e espontaneamente dentro de alguns dias. Entretanto, existem casos em que o indivíduo reconhece que, desde o evento traumático, apresenta prejuízos em sua função habitual. Nesses cenários é importante que busquem um tratamento psicológico com bons profissionais.

 

Fonte:

Beatriz Pecinato – Jornal da USP