Ambulâncias do Samu alcançam 85% da população, mas atendimento é desigual


 

Com quase duas décadas de atividade, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), uma importante porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), teve seu desempenho avaliado pela primeira vez em uma pesquisa de abrangência nacional. De acordo com um levantamento realizado pela enfermeira Marisa Malvestio, pesquisadora do Programa de Pós-doutorado da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE-USP), o serviço público de ambulâncias acionado pelo telefone 192 transformou-se em um microcosmo tanto das grandes realizações quanto das dificuldades do SUS.

O Samu foi o primeiro fruto da Política Nacional de Urgências, criada em 2003, e atualmente assiste 85% da população em 67,3% dos municípios do país. Em 2019, seus serviços foram requisitados em ligações telefônicas feitas por mais de 19 milhões de brasileiros. Isso resultou em quase 4,3 milhões de atendimentos realizados por ambulâncias, UTIs móveis e, em quantidade bem inferior, helicópteros, embarcações e motocicletas – cerca de um atendimento para cada quatro ligações.

Os números extraordinários do Samu escondem, contudo, uma desigualdade persistente no serviço que proporciona. Em um artigo publicado em julho de 2022 na revista Ciência & Saúde Coletiva, Malvestio e sua supervisora, Regina Márcia Cardoso de Sousa, docente da EE-USP, reuniram dados do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e mostraram que, embora a cobertura tenha aumentado mais de 5% no período de 2015 a 2019, alcançando 178 milhões de brasileiros, ainda existem lugares sem nenhum suporte ou onde há disponíveis poucas ambulâncias compartilhadas por vários municípios.

Diariamente, as unidades de suporte básico realizam 3,3 atendimentos e as de suporte avançado 2,7. “A média internacional é de sete atendimentos diários. No sistema da Inglaterra, chega a 11. Provavelmente, só temos 3,3 porque muitos dos recursos móveis não têm equipes para operá-las 24h por dia ou cobrem áreas muito extensas, o que acarreta longos deslocamentos, entre outros motivos”, sugere. O telefone 192 dá acesso a uma central de regulação de urgência e emergência, em que telefonistas atendem as ligações e as repassam a um profissional com formação médica. Ele identifica a gravidade, faz um primeiro diagnóstico e define a prioridade e a necessidade de enviar um recurso móvel – uma ambulância comum ou uma UTI móvel.

O custeio do sistema deveria ser tripartite, com o governo federal bancando 50% dos custos – os repasses anuais do Ministério da Saúde estão na casa de R$ 1,3 bilhão. Estados e municípios dividiriam a outra metade. Na prática, algumas unidades da federação arcam com a parte dos municípios. “O Ministério da Saúde define como deve ser a organização do serviço, compartilha custeio e investimento, distribui ambulâncias e fiscaliza, mas quem opera, faz a gestão e tem o poder decisório é o município ou um conjunto deles, associados em consórcios”, afirma Malvestio.

A médica Gisele O’Dwyer, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp-Fiocruz), diz que um dos méritos da investigação de Malvestio é apresentar uma análise do Samu de forma integral. “Foram feitos vários estudos de caráter regional, mas eles são incompletos porque o país é muito diverso. Há serviços muito frágeis Brasil afora”, afirma ela, que no início da década passada coordenou pesquisas sobre a implantação e situação do serviço no estado do Rio de Janeiro. A ausência de um sistema universal e uniforme frustrou uma das ambições iniciais do Samu, que era se tornar um grande observatório da saúde pública. “A ideia era que, se soubéssemos quais eram os problemas, a sua gravidade e o local onde ocorriam, seria possível conhecer os principais desafios da saúde pública do país e preparar o SUS para enfrentá-los”, afirma O’Dwyer.

 

Fonte:

Fabricio Marques: Revista Pesquisa Fapesp, mar. 2023